sábado, 15 de setembro de 2007

O Acre existe sim! (Mas de uma maneira muito peculiar)

Meus caros[1],

A carta que aqui escrevo – se é que podemos chamar isso de carta – nada mais é do que o relato das minhas impressões e experiências no Acre, esse lugar de existência duvidosa que mexe com o imaginário dos demais brasileiros.

As dúvidas quanto a existência do Acre são tantas que existem debates na internet e comunidades no popular orkut em que pessoas afirmam peremptoriamente que o Acre não existe.

Se nós pararmos para pensar, até que os argumentos daqueles que pregam a inexistência do Acre são plausíveis. Vejamos.

Alguém já assistiu ou teve noticias sobre algum documentário sobre o Acre? Não existem documentários sobre o Acre... Bem, tem o filme “Amazônia em chamas” em que o Raul Julia interpretou o Chico Mendes – herói acreano durante o ciclo da borracha – ao lado da Sônia Braga, mas uma produção holliwoodiana está longe de ser um documentário e o filme sequer foi gravado no que se acredita ser o Acre.

E quanto a minissérie Amazônia da Globo? Bem, mais uma minissérie global romanceada e, convenhamos, é consenso nacional que paira certa dúvida quanto a credibilidade e parcialidade de certos programas da Globo.

Vocês já repararam que os programas de televisão nunca indicam as condições meteorológicas do Acre? Não importa o que aconteça, ninguém nunca fala se vai chover ou fazer sol no Acre...

Finalmente, vocês conhecem alguém que seja do Acre?!?

Apesar de não entender muito bem a vantagem em inventar um local imaginário como o Acre, confesso que passei a ter dúvidas se o Acre realmente existia e eu mesma começei a elaborar possíveis teses para a criação de um estado ficticio...

Seria o Acre o local perdido do seriado Lost? Meu namorado jura de pés juntos que não! Para ele, ao contrário do Acre, o lugar perdido de Lost efetivamente existe! Há quem diga que o Acre é um portal de entrada de OVNIs na Terra ou então um universo paralelo...

Alguns juram que o Acre não passa de uma manobra política para enganar a sociedade.... Será que inventaram o Acre para desviar verbas públicas? Será que há um acordo de lordes tupiniquins e os politicos brasileiros dividem entre si o montante do repasse federal que seria devido ao suposto “Acre”? Hummmm.....

Mas não pode ser! A minha mãe saiu de casa há sete anos dizendo que ia morar no Acre!

Seria a minha mãe cobaia de alguma experiência secreta e, assim, ela acreditava morar no “Acre”? Estaria a minha mãe envolvida nesta farsa? Se bem que ela mesma sempre diz: “minha filha, esse lugar realmente não existe...”

Não havia mais como suportar tanta incerteza: eu precisava descobrir a verdade e conferir se o lugar que a minha mãe alegava morar efetivamente existia!

Liguei para o meu irmão para contar sobre minha expedição e ele prontamente aceitou patrocinar a minha empreitada rumo ao desconhecido! Entrei na internet e... Nossa! Como a passagem para o Acre é cara! O jeito foi fazer uma pesquisa de preços e pronto: comprei minha passagem. Só de ida... Ai, ai, ai... Que a volta seja o que Deus quiser!

Na semana anterior a minha partida, cuidei de encontrar alguns de meus amigos e de me despedir. Infelizmente não foi possível encontrar todos porque os preparativos para a viagem eram muitos e o tempo era curto. De todo modo, meus amigos temiam pela minha segurança e eu recebi várias recomendações, principalmente que não aceitasse nenhum cházinho aparentemente inocente que me fosse oferecido no avião.

Há relatos de pessoas que acreditaram ter chegado ao Acre após terem tomado um misterioso chá... Reza a lenda que a pessoa entra no avião, toma o misterioso chá que é oferecido, adormece profundamente e puft!: a pessoa acorda horas depois acreditando estar no Acre! Seria o Acre um estado de espírito?!

Bem, a semana anterior a minha viagem foi tão agitada que no dia da viagem estava sem voz e extremamente cansada. Embarquei dia 24 de agosto, numa sexta-feira ao anoitecer. O vôo atrasou um pouquinho e um senhor que se dizia do Acre e que aparentemente conhecia a minha mãe começou a puxar conversa comigo. Será que ele era um agente do governo tentando impedir meu embarque?

Ao passar pelo portão de embarque senti um frio na barriga, mas agora não tinha mais como voltar atrás. Acomodei-me no apertado – e lotado – airbus e tentei me acalmar. Antes da decolagem, as aeromoças ofereceram balas e caramelos para todos os passageiros, mas eu não aceitei. Vai que desenvolveram uma balinha alucinógena para substituir o chá? Afinal, ninguém resiste a uma bala ou doce...

Só não deu para ficar acordada a viagem toda, porque afinal de contas eu estava cansada e a viagem é longa....

Depois de algumas horas de vôo, não é que eu cheguei ao Acre? E não é que aquele senhor com quem eu conversei no Galeão efetivamente era conhecido da minha mãe? Minha mãe estava toda animada me esperando no aeroporto e eu estava admirada de ter finalmente chegado ao Acre.

Sim! Ao contrário do que todos nós pensávamos e para surpresa geral O ACRE EXISTE!

Pois bem, aqui estou eu afirmando a existência do Acre e descrevendo o que vejo: sou a prova viva de que o Acre existe. Nesse momento sinto-me um pouco tal qual Pero Vaz de Caminha escrevendo sua carta sobre o Brasil para a Corte em Portugal...

Devaneios históricos a parte, o fato é que estou no Acre há 15 dias e durante esse periodo entendi o que as pessoas efetivamente queriam dizer com “o Acre não existe”.

A verdade é que não devemos interpretar essa assertiva literalmente. O Acre não existe quando levamos em consideração os padrões normais nacionais (ou aquilo que acreditamos ser o padrão normal nacional). Podemos dizer que o Acre existe sim, mas existe de uma maneira muito peculiar e própria.

Minha chegada a Rio Branco foi marcada por uma seca de 40 dias, um calor fenomenal e um ar seco carregado de partículas de poeira oriundas das queimadas próximas e típicas desse periodo do ano.

Na manhã seguinte a minha chegada, ao dar uma volta de carro pela cidade com a minha mãe, me deparo com um número absurdo de motos e bicicletas cometendo as maiores maluquices no trânsito. Dirigir em Rio Branco é um pouco como jogar video game: as motos e bicicletas são obstáculos a serem desviados e, dependendo do dia, o grau de dificuldade do joguinho é maior. Sabe aquelas moto-táxis que a gente vê nas entradas das favelas cariocas? Pois aqui isso é um serviço amplamente utilizado pela população e os motoristas são cadastrados na Prefeitura.

Nunca vi tanta moto e bicicleta assim antes, parecia que eu estava em Mumbai, Calcutá ou Bangladesh.

Não, nunca estive em nenhum desses lugares, mas sei que o trânsito desses lugares é caótico e cheio de motos e bicicletas porque, ao contrário do Acre, existem vários documentários a respeito da complexidade e contradições asiáticas.

Curiosamente, também nunca tinha visto tantas caminhonetes Hilux por metro quadrado.... Uma parcela da população está efetivamente sabendo ganhar dinheiro nesse local.

Infelizmente, uma triste realidade merece destaque: caminhões levando toras enormes de madeira demonstram que talvez o discurso de desenvolvimento sustentável e preservação de nossas florestas seja ainda apenas um discurso para maquiar a exploração irracional de nossas florestas.

Pois é, existe contradição em quase tudo o que se vê.

A população “local” é um misto de pessoas das mais diversas origens e a riqueza de sotaques faz de Rio Branco um lugar, pelo menos, curioso.

Durante o ciclo da borracha, a grande migração ficou por conta dos nordestinos, mas obviamente pessoas de todo o Brasil vieram para cá e ajudaram na formação do povo acreano.

A força e união da comunidade sulista, principalmente gaúcha, merecem destaque. A preocupação em manter suas tradições é visível: cuias e erva mate são facilmente encontradas nos mercados locais, é comum encontrar gaúchos bebendo chimarrão mesmo com tanto calor e há um programa dominical em uma das rádios locais dedicado exclusivamente a comunidade gaúcha. Eu e minha mãe costumamos ouvir o programa e as músicas dos pampas. Inclusive, eu já comprei a minha cuia de chimarrão e nós estamos nos organizando para participar dos festejos da Revolução Farroupilha na semana do dia 20 de setembro (com direito a cavalgadas e churrasco!).

Não tenho conhecimento histórico suficiente para afirmar com precisão se a razão da vinda de tantos gaúchos foi devido a borracha ou a expansão do pecuarismo, mas desconfio que tenha sido por conta da atividade pecuária. A propósito, a carne de gado aqui é boa e barata.

Paralelo a isso, a abertura do Curso de Medicina da Universidade Federal do Acre trouxe para a capital Rio Branco estudantes de todo o país, enriquecendo ainda mais a diversidade cultural do Acre.

Índios? Não sei de nenhum na capital. Sei que há populações indígenas e de certo grande parte da população foi dizimada, mas os poucos que ainda sobrevivem estão no interior. Vou fazer uma pesquisa sobre isso.

As deficiências ainda são muitas, não há como negar esse fato, mas também temos que reconhecer que as coisas não são tão ruins quanto as pessoas possam pensar. Para minha alegria encontrei uma capital que, apesar de esquecida por anos a fio, está crescendo e se urbanizando a passos largos.

Os parques públicos – apesar de curiosamente pouco arborizados – permitem a prática de exercícios e o lazer em familia.

O calor durante o dia é realmente muito forte e desgastante, mas a tradição do tacacá das 17 horas anuncia o término do dia e o inicio de uma noite agradável e convidativa para um passeio.

Os bares e restaurantes locais – pelo menos aqueles que eu conheci – são bem agradáveis: música ambiente aprazível, mesas ao ar live, comida boa e drinks bem feitos. Sim, os drinks foram devidamente aprovados pelo controle de qualidade ISO/Luciana e nós temos margaritas!!! Uhu!!!!

As minhas saídas ao anoitecer com pessoas amigas e o papo descontraído, ou até mesmo só com a minha mãe, têm amenizado a saudade de casa.

A propósito, já contei que tive uma festa de aniversário “surpresa”? Não foi muito surpresa porque a minha mãe não conseguiu disfarçar muito bem, mas foi ótimo! Tive direito a margaritas e a uma deliciosa torta de chocolate trazida por crianças lindas.

Até que esse lugar ainda esquecido e que luta para conseguir algum destaque e se desenvolver não é tão ruim assim....

Quanto a mim, apesar do calor e da saudade de casa, estou muito bem. Tenho passado meus dias na biblioteca de uma universidade local estudando para concursos públicos. Estudando mais ou menos, pois eu achei um livro ótimo de Habermans que acabou por me desvirtuar do meu programa de estudos...

Agora que vocês já sabem que o Acre existe e que eu estou bem, peço licença para me despedir. É que a semana foi cansativa e hoje tenho que descansar porque a minha agenda para domingo está lotada: parada gay com direito a show da Fernanda Abreu!

Amo vocês e estou morrendo de saudades, mas dá licença que eu vou é aproveitar a minha estadia aqui em Rio Branco e me divertir muito!!!!

Ah, as fotos eu mando depois que a banda larga for instalada aqui em casa!

Até a próxima! Beijos para todos!!!!!!

Lucis :-)

[1] O uso da expressão “meus caros” foi gentilmente cedido pelo Vítor.